quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Explorando a região kalunga (11-14/ago)


Aproveitando um feriado da Justiça, que eu podia emendar com o fim de semana, fui atrás de uma travessia ou um programa mais longo na Chapada dos Veadeiros. Esses programas de Angela não são fáceis de arrumar (meus amigos dizem que índio não faz isso!), e muito menos de conseguir companhia J!

Um amigo que é guia em Cavalcante, Paulo, me deu a dica de participar da maior festa dos kalungas – o império do Divino e de Nossa Senhora da Abadia, que acontece todos os anos nos dias 14 e 15 de agosto. Mas a festa dura aí uns 5 dias, reunindo toda a comunidade kalunga da região. Precisava de um guia kalunga, porque só eles andam bem pelo seu território (sítio histórico). A maioria não queria. Primeiro porque não queriam andar tanto, depois porque era melhor ir pra festa!

Por sorte apareceu um que precisava de uma grana, 'Seu Pulú’ (Apolinário). E, mesmo meio em cima da hora, deu certo de combinar tudo e fui!

O esquema foi: ir para Cavalcante encontrar o Paulo e o Pulú (dia 11), seguir para o Engenho II, um povoado kalunga conhecido, que é saída para algumas cachoeiras famosas, de lá o Paulo ficaria com meu carro e eu seguiria com o trekking junto com o Pulú, e o Paulo nos pegaria na estrada do Funil do Paranã, onde sairíamos da trilha no domingo (dia 14).


Pé de barú, no povoado do Engenho II

Na quinta fui para a cachoeira Candarú, que é a sequência da Capivara. Esta última mais frequentada e já conhecida, a Candarú quase ninguém vai. As cachoeiras dessa região são lindas...vale a pena ficar e explorar mais. Coisa que os turistas não fazem, só vão para a Santa Bárbara, a mais famosa, e voltam...não sabem o que estão perdendo!


Entrando na trilha da Candarú.

O problema é que o povoado do Engenho II ainda não tem pousadas, tem apenas dois campings, e, em um deles, descobri que tem alguns quartos para receber turistas. Tudo muito simples, mas o suficiente para quem procura natureza e contato com a comunidade! Seu Pulú conseguiu um pouso pra gente na casa de uma parente dele, e foi ótimo!

É claro que a foto não dá a dimensão do lugar! Eu fiquei encantada!

Tirei trocentas fotos :)

Apesar da secura, o cerrado tem flores por toda parte...até no chão brota um bouquet!

A Candarú é simplesmente linda! Eu afirmo que uma das mais bonitas da região. Achei o acesso super tranquilo, e foi ótimo para começar.

Mais uma :)

Esse açaí eu carreguei desde Cavalcante e chegou ainda congelado na cachú! Vi isso na última vez que fui a Cavalcante, quando encontrei um guia tomando o açaí no Ponte de Pedra...agora foi a minha vez! Sorriso roxo :)

Banho nas quedas!

Mais cor na secura!

Pôr-do-sol, que não podia faltar!

No dia seguinte, que seria o mais punk, levantamos cedo, fomos atrás do café que havíamos combinado antes e seguimos para andar até o Vão de Almas, pra pousar na casa de seu Pulú! Me disseram que a trilha tinha por vota de 25km, talvez um pouco mais. Não sei dizer quantos tem, mas eu achei bem difícil carregando minha mochila naquele calor escaldante de agosto e com a baixa umidade que temos por aqui. Fizemos em 8h:30 e eu já estava precisando largar aquela mochila de qualquer jeito!


Pé na estrada, digo, na trilha...

Angico do cerrado! Estavam todos floridos. Roxinhos também tinham as sucupiras...

Primeira corredeira, a uns 8Km do Engenho II, Bom Jesus.

Toda a região tem esse lageado super inclinado, no meio passa o rio. Esse foi o maior do caminho...

Segue o rio pelo lageado...tudo cercado de serra.

Pela manhã a vista do Morro do Moleque era essa, super embassada. A trilha praticamente contorna o morro. Ele foi se transformando.

Uma parte do caminho é feito por uma estrada que leva ao Vão do Moleque, mas que não passou um carro sequer! A trilha é um sobe e desce e atravessa a serra que cerca o Vão de Almas. O vão é um vale totalmente cercado de serras (360º de ‘montanhas’).

A trilha tem bastante pedra solta e areia. A vegetação, apesar da seca, apresenta árvores e flores de todas as cores, amarelo, laranja, vermelho, verde e, claro, muita coisa seca.

O cerrado sempre me impressiona muito pela força da natureza na escassez de água, onde brota um monte de frutos mágicos: baru, mangaba, cajuzinhos...sem falar nas flores, como agora temos os ipês amarelos brilhando em vários pontos. Muuuito lindo mesmo! 

Nessa altura do campeonato acho que já tinha mais de 6h de trilha. Os neurônios já estavam fritos, o pé também!

O último ponto de água na trilha...

Encontramos esse rastro de onça...e, vários de veadedos. Pena que eles não apareceram pra dizer um oi!

Quando chegamos propriamente no vão, tudo plano, solo de areia branca, vegetação mais rala, mais calor ainda (não acreditei que levei roupa de frio pra noite!), e nada de trilha! Seu Pulú ia pra lá e pra cá e eu só pensando onde isso vai dar?? E deu em cima da casa dele, depois de trocentas horas naquele calorão!

Dentro do Vão de Almas, tudo plano, com 360° de serra em volta.

A visão do paraíso! A casa de seu Pulú! :)

O legal é que a terra é kalunga e eles sabem muito bem cuidar dela e se organizar. Cada um tem um pedaço de terra do tamanho que precisa para cuidar do que dá conta! Não moram um em cima do outro...você nem vê a casinha do outro. Não tem água encanada, nem luz. Banho e água do rio, luz de lamparina ou vela. O máximo em sua simplicidade! E nem precisei usar os equipamentos para acampar, eles tinham um colchão e dormi como uma rainha J! Sem falar na comida da Elisa, esposa do seu Pulú, e no bolo de panela e nas tapiocas que ela fez pro café da manhã! Muito legal!


A sala, onde eu dormi.

A cozinha da dona Elisa.

O tanque para fazer a farinha de mandioca, que você encontra pra comprar no Engenho II.

Seu Pulú me explicando o processo...esse é um galho de angico, que ele usa pra ralar a mandioca!

A vista do Morro do Moleque do quintal do seu Pulú! Maravilhoso!!!


Entardecer...

Hora da janta!

Os bolos de panela para o café da manhã.

No dia seguinte, seguimos para o lugar da capela onde estavam se reunindo para a festa. O Paulo tinha me dito que eles chegariam carregando tudo de burrinho para a festa, mas, chegando lá vi que já tem acesso por estrada de terra (4x4) e todos chegavam de camionete! Uma vez que você tem acesso de carro a algum lugar...já era! E, não parava de chegar gente o tempo todo!

Sol nascendo :)

Hora da festa das ararinhas verdes!

De novo, Morro do Moleque no amanhecer!

Quase não pego esse aí...

Pegando a trilha pra capela...

Dando tchau pro Moleque :)

Não era bem aquilo que eu esperava, muita gente e barulho! Mas, era só um dia, no domingo eu já seguiria para voltar para a casa, e ainda tinha o rio Paranã para explorar...então, passou rápido aquela confusão! Muitas coisas acontecendo, ação social do governo do estado, peças e atividades desenvolvidas pelos kalungas para a festa, e muita carne e bebida rolando entre a galera.


Quando chegam no lugar da festa, a primeira coisa é entrar na capela para rezar.

Os estandartes do Espirito Santo e de N. Sra. da Abadia.

Foi aí que montamos 'minha' barraca.

Era assim que o povo dividia a carne...

Cada um chega lá e pega seu pedaço...os cachorros também estão na área...mas não vi eles atacarem a carne!

Nada de infraestrutura, água, luz, banheiros, latas de lixo...imagina!? Bom, arrumamos um lugar para colocar uma barraca pra mim, e a mochila ficou no rancho de uma das cunhadas de seu Pulú. Eu pensei que ele fosse dormir com algum dos parentes num rancho ou numa barraca, mas no meio da noite, quando levantei, ele estava deitado lá do lado da barraca, no chão, com algumas palhas forrando! Pelo calor tudo bem, mas na dureza do chão afff...como ele estava dormindo mesmo, deixei!

Voltando para o dia...fomos atrás de um dos kalungas que tinha barco. Foi uma novela mexicana para ir até o barco, arrumar o motor, por gasolina, e por aí foi, mas deu certo e passamos uma ótima tarde no rio, longe da muvuca da festa J! O rio passa por um vão enorme e vai se estreitando num cânion, onde começam as corredeiras e quedas. Não conseguimos passar nesta parte com nosso barco, mas paramos e fiz uma trilha pelas pedras beirando o rio para ter uma ideia da sequência, sem me estender muito porque deveria seguir por esta mesma trilha no dia seguinte.


Local de onde saimos para o passeio de barco pelo Paranã.

Agora fica mais fácil de ver como a região é cercada pelas serras.

Muuuitas pedras, árvores coloridas, areia branca.

Mais curvas e mais morros...

A paisagem é linda.

No fim da tarde, quando retornamos, eu estava morrendo de fome, mesmo! Fui atrás da janta e foi aí que a aventura deu ‘problema’...Lá o povo ganha carne (bovina) para a festa, mas como não tem geladeira na maior parte dos lugares e ela é relativamente ‘fresca’ olhei para aquilo e pensei ‘tudo bem’! Mas, depois de comer a carne no almojanta minha festa acabou L! Foi difícil comer, acho que meu corpo já rejeitou a carne de cara, mas não podia fazer feio e tentei comer. Quando ‘terminei’ já achei que tinha alguma coisa errada, mas fiquei de boa até o começo da noite, quando o ‘bicho começou a pegar’. 

Mais rio, mais pedras...

Quando começa a formar o cânion que estrita a passagem do rio (funil).

Aí as águas se agitam e não seguimos com o nosso motor!

Subindo pelas pedras para ver o curso do rio e a cachoeira/corredeiras que forma à frente.

Margeando o rio, só pedras!

Nosso novo amigo de Goiânia, só querendo garantir o peixe da janta, preferiu ficar no barco a escalar as pedras :) Resultado...nada de peixe!

Chegando na 'capela' essas figurinhas ficaram de olho na minha máquina e consegui que a mãe delas deixasse eu fazer algumas fotos :)

A capela no fim da tarde!

Pela noite circulei, peguei um pedaço da missa, comprei água pra compensar mais um dia que não bebi muito, e encontrei com o amigo que fiz no passeio de barco. Ele era do grupo da ação social do governo, e estavam todos na cerveja, só esperando o forró pegar pela noite! Eu, que teria de seguir meu caminho logo cedo, fui pra minha barraca dormir.

Bom, pulando os detalhes, começou o vômito e a diarréia e já vi que o retorno seria complicado! Na ação social tinha médico, aí levantei e já fui direto logo cedo. Sem muito sucesso com os medicamentos e com o soro, porque não parava absolutamente nada em mim. Por fim, desisti de fazer toda a trilha pelo funil do Paranã e fomos atrás do cara do barco de novo para me levar uma parte do trajeto que margeava o rio. Consegui andar até o barco (uns 2km) e depois mais uns 3km de trilha até a estrada, onde combinamos de encontrar o Paulo. Graças a Deus deu tudo certo e consegui chegar em casa kkkk...


Gaviãozinho apressado, nem esperou a foto!

Pegando a trilha em péssimas condições :O

Pé de kalunga!

Me despedindo do Paranã...

Mais florzinhas para fechar o post ;)

Todo mundo que encontrei na festa, e, mesmo os kalungas, todos me disseram que eu sou doida de inventar um trekking desses! Mas, a única coisa errada foi comer a carne...se ficasse só no arroz e feijão estava tudo certo! É assim que a gente aprende ;) Bom, cheguei em casa e estou aqui para contar a história, e foi boa!

Na próxima ida para a Chapada eu prometo que me comporto! Na volta tive a tristeza de passar por uma grande queimada na beira da estrada, perto de Alto Paraíso...uma pena que isso ainda ocorra. A brigada já estava atuando, mas a situação era bem crítica. 

Perdi os dias mais animados da festa, ou a festa propriamente dita, pois no domingo (14), à noite, seria a festa do Imperador e na segunda-feira, 15, o império de Nossa Senhora da Abadia, e os kalungas só retornariam para suas casas no dia seguinte (16)...mas, euzinha aqui, além do piriri, tinha de trabalhar na segunda! De qualquer forma, convivi com eles, andei por suas terras, aproveitei as belezas da natureza e, agora que já estou boa, já quero outra aventura! :)

DICAS:

- Para quem quer conhecer mais sobre a festa do Império no Vão de Almas, e também sobre o sítio histórico dos kalungas:



O Paulo me enganou quando disse que eu veria o pessoal chegado com seus burrinhos carregados para a festa...agora os 4x4 chegam lá e não tem mais nenhum burrinho no caminho! Só eu fui andando kkkk!

- Guias: em Cavalcante, o Paulo (Pardal – 62 99612 6812), seu Pulú, kalunga (62 99665 2823 - guia do Vão de Almas), para navegar no Paranã, seu Getúlio, kalunga (62 99997 2732).

- No Engenho II, como mencionei no texto, já tem onde ficar, 2 campings e café da manhã! Perdi o contato que eu tinha de lá, mas achei isso na internet:

- Os kalungas são super receptivos, adorei ter ficado na casa deles, simples, mas perfeito para esse fim! Eles não têm fontes de renda, e, tudo que têm é construído por eles. Os que têm algum eletrodoméstico, no Engenho II, o conseguiram com muita luta ou ganharam. No Vão de Almas, nada de infraestrutura, mas tomar banho no rio, não ter barulho de nada, dormir com o céu estrelado sem nenhuma luz é o MÁXIMO, não tem preço!!!
Quando forem, se puderem ajudar com qualquer coisa será muito bem-vindo!


Ahhh, eles não gostam de fotos...então, se quiserem tirar, é bom pedir permissão!